A cidade de Varanasi é
considerada sagrada pelos hindus pois, conforme a lenda, foi fundada pelo deus Shiva há 5.000 anos.
O rio Ganges, aqui
conhecido por Ganga, também é sagrado. De acordo com a religião hindu, um banho no rio absolve a
pessoa de todos os seus pecados.
Trocando em miúdos, um
banho no sagrado Ganga bem na parte em que ele passa por Varanasi, também
sagrada, é como assegurar um pedacinho do paraíso! Morrer e ser cremado em
Varanasi, então, à beira do Ganga, é subir em vôo non-stop em primeira classe
para o Nirvana, interrompendo o ciclo de reencarnações necessárias para a evolução
da alma. Essa é, pelo menos, a crença local.
Pois hoje acordo às 5:00
da manhã para passear de barco pelo Ganga e testemunhar a fé hindu ao nascer do
sol.
É lindo e horrível ao
mesmo tempo. Dezenas de pessoas, de todas as idades, se banham no rio cedinho.
Mergulham, nadam, atravessam o rio até a outra margem, voltam, bochecham com a água,
cospem... Se banham MESMO, alguns com roupa, outros sem cobertura alguma no
corpo. Alguns lavam roupas, outros escovam os dentes e assim a cidade vai
acordando.
O que torna a cena horrivelmente
chocante é o fato de, na região de Varanasi, o Ganga ter 1.500.000 (isso mesmo,
um milhão e quinhentos mil) coliformes fecais por 100 ml de água, quando o
valor aceitável para um local de banho é inferior a 500 (quinhentos). Sacou? E
a galera escovando os dentes!!!! Gente, isso é praticamente como comer bosta! Yeeeekt!!!!
Na volta para o hotel, o
guia pergunta se alguém quer comprar xales de seda, o produto pelo qual
Varanasi é famosa. Há cinco pessoas no grupo: eu, que não posso comprar nada
(porque tudo o que compro tenho que carregar), um holandês que também não tem
interesse nenhum em xales de seda e três dinamarquesas, que se animam quando o
guia garante que é um lugar que os turistas não conhecem, perto da casa dele.
Afirma que não está indicando porque leva comissão, não - tanto que ele nem vai
junto!!!! É apenas porque ele quer ser legal com a turistada. Sei… Já conheço
esses papos de guia, mas as dinamarquesas querem ir e, pra não ficar esperando
no carro, vou junto.
E olha só que coincidência!!!!!
Justo no momento em que o nosso carro encosta o dono da tal loja está paradinho
ali, batendo papo com alguém!!! Uau, que “sorte” que ele está ali, pois assim já
nos guia para a loja, que fica no meio de um labirinto de casinhas pobres e
vaquinhas gordinhas, e nosso guia, depois de um abraço e umas palavrinhas com o
sujeito vai tranquilamente pra casa.
E lá vão as ovelhinhas pra
boca do lobo… Mas antes de nos levar à loja ele faz questão de nos mostrar como
são confeccionados os xales. São quase 9 da manhã e ele pára em uma das
casinhas, onde pela porta e pela janela vemos uma máquina de tecer e duas
pessoas que nela trabalham: um senhor que aparenta pouco mais de 50 anos e uma
criança que certamente não tem mais de 7 ou 8 anos de idade.
Enquanto as dinamarquesas
perguntam sobre a máquina e como são feitas as estampas eu presto atenção na
criança e na tarefa repetitiva e estafante que ela distraidamente desempenha.
Neste momento, minha
vontade é dar um cruzado de esquerda no nariz do sabidão que explora esse tipo
de mão-de-obra tão covardemente e passar-lhe um sabão que o faria se encolher
de vergonha. Ok, ok, confesso que nem sei o que é um cruzado de esquerda, mas já
ouvi o termo e soa como algo que dói bastante – ainda mais considerando que eu
sou canhota.
Em alguns segundos volto à
realidade, pois obviamente esse delírio só funciona na minha imaginação. Até
porque eu sou totalmente contra a violência e jamais partiria pra cima de alguém,
mesmo às vezes tendo muita vontade.
Minha reação, então, é
perguntar simplesmente: “qual a idade daquela criança??”. O explorador de
criancinhas não respondeu minha pergunta e se apressou em responder que o
moleque obviamente não trabalha
ali – claro que não! Está apenas dando uma mãozinha ao pai, que é o sujeito
trabalhando a seu lado, enquanto seu ajudante não chega! Ah, claro, está tudo
explicado!
A perguntona intrometida
que vive no meu corpo então prossegue:
- Esse garoto frenquenta a
escola?
- Claro!
- A que horas?
- A aula dele começa às 10
horas. Daqui a pouco ele vai.
Percebo que não importa a pergunta que eu faça, a resposta sempre vai ser a politicamente correta, a
que as pessoas querem ouvir - especialmente os turistas que querem comprar as
preciosidades de seda a preço de banana. E não há nada que eu, sozinha, possa
fazer ali, nesse lugar estranho onde nem falo ou entendo a lingua local. Mais
uma situação que entra para a minha “lista de pendências para melhorar o mundo”.
Uma lista, aliás, que só cresce.
No fim da tarde volto aos
ghats – a propósito, ghats são escadarias que dão para o rio (no caso, o
Ganges). Encontro Juana, a brasileira de Recife que está viajando pela Índia,
lanchamos juntas e vamos assistir às cerimônias sagradas: o “puja”, que é uma
reza, algo como uma “missa” hindu, e as cremações.
Damos a sorte de conhecer
um indiano fora do normal, que nos explica pacientemente tudo sobre a cerimônia
de cremação e responde a todas as nossas perguntas, pois mais absurdas que pareçam.
E no final não pede dinheiro e nem quer nos levar a nenhuma loja!!! Uau, isso é
o que eu chamo de um dia perfeito!
Enfim, resumindo algumas
curiosidades que vi e aprendi sobre o assunto:
- mulheres não podem ir às
cerimônias de cremação porque choram e isso impede que a alma vá para o
Nirvana. Por essa razão, devem ficar chorando juntas em casa em vez de
atrapalhar a libertação do ente querido.
- são necessários cerca de
200 kg de madeira para queimar um corpo. Cada kg da madeira mais simples custa
entre 10 a 12 rúpias (x 200kg = 2.000 a 2.400 rúpias = 42 a 50 dólares). As
castas mais altas geralmente encomendam a cremação com madeira de sândalo, que é
cheirosa. Preço? Pelo menos 900 rúpias por kg (x 200kg = 180.000 rúpias = 3.750
dólares).
- os corpos chegam
carregados pela família sobre uma espécie de maca feita de bambu, são banhados
no rio e logo colocados pra escorrer um pouco (ou não queimam, claro). Após, são
colocados sobre a madeira já “montada”;
- algumas famílias descobrem
o rosto do morto e posam a seu lado para fotos (vi isso acontecer e achei uma
piração!). Mais madeira é colocada por cima do corpo;
- dependendo de quem morreu é
definida a pessoa que acende a fogueira. Se foi a mãe, o filho (homem) mais
novo acende; se o pai, o filho mais velho e, se a esposa, o marido. Não
consegui desvendar quem acende quando a mulher que morre é mãe e esposa. Seja
quem for o parente que acende a fogueira, ele tem a cabeça toda raspada em
sinal de luto.
- meu amigo indiano explicou que não é qualquer fósforo que
pode ser usado nas cerimônias de cremação! O fogo usado para acender a fogueira
é um fogo sagrado, uma chama eterna do deus Shiva que fica bem perto do ghat –
tem toda uma lenda interessante pra justificar. E segundo me explicou, é graças
a esse detalhe que não há cheio de carne queimada no pedaço! Não fosse a chama
sagrada, ele diz, o cheiro de churrasquinho humano se espalharia pela cidade.
- Ossos da bacia feminina e
peito de homens muito fortes não queimam completamente, portanto seus restos são
jogados no Ganges.
- Agora o que mais me
impressionou: bebês e crianças de até 13 anos de idade, mulheres grávidas, sadhus
(pessoas sagradas), pessoas picadas por cobras (uma cobra de um tipo específico
que aqui eles chamam de “cobra”) e leprosos não são cremados - são apenas
amarrados a uma pedra e jogados no fundo do rio Ganges! O pior é que de vez em
quando acontece de o nó desatar e o corpo subir... aí é preciso amarrar
novamente em uma pedra para afundá-lo. Um estrangeiro que conheci disse que viu
um cachorro andando com o corpo de um bebê já em decomposição, que
provavelmente subiu à superfície e acabou na margem do rio... Pois é, essas
coisas acontecem MESMO.
- É preciso cerca de 3 horas
para queimar um corpo, e durante esse tempo a família (ou melhor, os homens da
família) ficam assistindo. Terminada a cremação eles se dirigem a outro ghat e
se banham no rio Ganges.
- Na época de seca, quando o
rio está com baixo volume de água, como agora, o ghat fica com três níveis:
inferior, médio e superior. Nessa época, as cremações, então, ocorrem por
castas. A casta inferior é cremada no nível mais baixo do solo e a casta mais
alta no nível mais alto. Na época de chuvas, em que o rio está cheio, há apenas
um nível – os outros ficam cobertos pela água. Nessa época todas as castas são
cremadas lado a lado, no mesmo nível.
- Como eu disse, acredita-se
que quem é cremado aqui vai direto para o nirvana e se livra de outras encarnações.
Pois tem gente que, quando adoece, vem pra Varanasi só pra esperar morrer!!!
Aliás, o governo ainda providencia moradia pra essas pessoas!!!!
Depois disso, só tenho uma
coisa a dizer: alguém salve o rio Ganges dos indianos!!!!