15 Dias em um Ashram
INDIA | Wednesday, 5 February 2014 | Views [1702] | Comments [2]
Entrada
Passar uma temporada num Ashram na Índia. Sim, esse era mais um dos meus sonhos malucos desde a adolescência.
Foi com certa surpresa que percebi que muitas pessoas não sabem o que é ashram, então tomei a liberdade de copiar a definição do Wikipedia para facilitar a minha vida e daqueles ainda não pesquisaram mais essa “invenção de moda” dos galegos, e contar com um pouco mais de detalhes a rotina que vivemos lá.
Aí vai a definição: “Um ashram, na antiga Índia, era um eremitério hindu onde os sábios viviam em paz e com tranquilidade no meio da natureza. Hoje, o termo ashram é, normalmente, usado para designar uma comunidade formada intencionalmente com o intuito de promover a evolução espiritual dos seus membros, frequentemente orientada por um místico ou líder religioso. Tradicionalmente, os ashrams situam-se afastados de habitações, em florestas ou regiões montanhosas, no meio de amenos ambientes naturais propícios à instrução espiritual e à meditação. Exercícios espirituais e físicos, bem como várias formas de Ioga são práticas regulares dos residentes de um ashram.” Enfim, como eu poderia não querer visitar um lugar desses?
Escolhi um ashram no sul da Índia, Sivananda Yoga Vedanta Dhanwantari Ashram, onde meus sobrinhos Leo e Paula já haviam estado, embora fosse de uma escola de Ioga diferente da qual eu pratico. Muito organizado, no alto de uma montanha, com um lindo lago e rodeado de jardins e pequenos templos. Regime monástico, cheio de regras e horários como qualquer ashram. Logo que chegamos me assustei: nos pediram os documentos, fizemos os pagamentos, nos entregaram as roupas de cama, nos indicaram nossos dormitórios (separados), horário da próxima aula de ioga e ponto. Pensei: Caramba! Onde é que me meti? Nos preparamos para ficar uma semana, mas de cara comecei a pensar que só ficaríamos um dia!
Ficamos 15 dias. Fizemos toda a programação de um curso chamado Yoga Vacation, de ioga e meditação. Para mim a rotina era deliciosa, sem nenhum tipo de preocupação ou stress. Acordávamos às 5:20 da manhã com os sinos tocando. Às 6:00, ainda escuro e em silêncio, estávamos todos no Templo principal para o Satsang (meditação guiada, cantos em sânscrito e preces, seguidos pela leitura e explicação de algum texto). Quando terminava já havia amanhecido. Tomávamos chá e chai (chá com leite) no pátio central do Ashram, embaixo das árvores. Às 8:00 começavam as aulas de ioga, assim de estômago vazio como deve ser, que durava duas horas, com professores excelentes. Às 10:00 almoçávamos todos no mesmo refeitório, comendo em silêncio, sentados no chão, depois de cantar e agradecer a Deus, é claro. Comida vegetariana, muito temperada e muito saborosa. Ao final cada um lavava seu prato e copo. No primeiros dias havia colher para quem não quisesse comer com a mão como os indianos, mas como as colheres estavam desaparecendo (isso mesmo, lá também roubam talheres, rsrs), pararam de distribuí-las e passamos a levar as nossas. Às 11:00 era vez do Karma Yoga, que nada mais é que um trabalho no ashram para ajudar na manutenção, mas com o objetivo de purificação pessoal, e por isso difere de um trabalho voluntário. Nós mudávamos sempre de atividade: carregamos lenha, ajudamos a servir comida e lavamos as pias do refeitório. Às 12:30 havia treinamento individual das posturas ou de meditação, mas não era obrigatório. 13:30 outro encontro embaixo da ‘’árvore do chá” para um leve lanchinho de frutas e chá. Às 14:00, palestras sobre os diversos pontos da filosofia da ioga e às 15:30 mais duas horas de prática. Às 18:00 o jantar e às 20:00 outro Satsang, a última atividade do dia. Às 22:30 as luzes se apagavam e íamos todos dormir. Ufa!
Mas embora pareça uma rotina cansativa, não tivemos sequer um dia igual a outro. Duas vezes por semana o Satsang era realizado na beira da represa, depois de caminharmos em silêncio (caminhada meditativa) por 25 minutos enquanto o dia amanhecia. O nascer do sol chega acompanhado pelos cantos e é lindo! Nas noites de sábado tinha show de talentos no Satsang e era muito divertido pois as pessoas faziam apresentações cantando, tocando instrumentos, dançando e muito mais. Teve de tudo, até breves peças de teatro! Uma diversidade cultural enorme, pois havia gente de todo canto do mundo. Nós resolvemos não dançar forró, apesar da insistência, pois achamos que não cabia no ambiente monástico em que estávamos.
Às vezes as aulas de yoga eram na beira do lago, num espaço muito especial onde antigamente o próprio Vishnu Devananda fazia suas práticas. É um lugar bem inspirador e muito relaxante.
Quando batia o cansaço (porque não é mole fazer 4 horas de ioga por dia) era possível ficarmos quietinhos no dormitório ou em algum templo dormindo, lendo ou simplesmente descansando. Também era possível pegar uma autorização para sair do Ashram e fizemos isso duas vezes para nadarmos no lago e tomarmos café com biscoitos numa bodeguinha do vilarejo com nossos amigos. Sim, fizemos ótimas amizades, especialmente com duas chilenas, um japonês e um espanhol, nossa ‘tchurma’ no ashram.
No Satsang da noite tivemos gratas surpresas. Uma noite houve a apresentação de um príncipe indiano cantor e seu grupo de música clássica. Explicou como é a música e as diferentes notas musicais indianas e foi um show e tanto. Em outra noite tivemos uma palestra de um médico ayurveda que acabou discutindo com uma aluna e foi embora bravo, sem terminar a palestra. A aluna do TTC (curso de treinamento de professores que estava em andamento) questionou a definição que ele deu de uma palavra em sânscrito e ele não aceitou a correção. Precisa praticar mais meditação, rsrsrs. Também tivemos uma aula de matemática védica e aprendemos a fazer contas enormes sem calculadora num minuto! Impressionante!
Participamos também da cerimônia de iniciação onde aqueles que desejaram receberam seus nomes sagrados em sânscrito e seu mantra pessoal. Foi um ritual bem interessante. Participamos também da festa de despedida do TTC e Yoga Vacation, com música ao vivo indiana. Todos dançaram prá valer e nos sentimos na própria Bollywood. Dá para imaginar tudo isso no mesmo ambiente onde meditávamos diariamente? Este é o espírito da Índia: surpreendente e intenso.
O Ashram estava bem cheio: em torno de 400 pessoas. Só o TTC tinha 280 alunos. As sextas feiras eram os dias de folga, onde nenhuma atividade era obrigatória e eles promoviam tours pelas redondezas. Não fomos a nenhum pois o Ashram ficava muito vazio e sossegado, e preferimos curtir a calma e fazer as práticas.
A estrutura é bem grande. Fica num terreno irregular, então os diversos prédios estão em níveis diferentes entremeados de jardins bem cuidados. Tem o templo principal com dois salões, onde acontece o Satsang, palestras e aulas de ioga. Além disso há um refeitório bem grande, uma lojinha de conveniência conhecida por Boutique, uma lanchonete (Health Hut), biblioteca, lavanderia, Clinica de medicina Ayurvédica com médico, farmácia e tratamentos diversos de desintoxicação e massagens, e vários prédios de alojamentos. A maior parte são dormitórios coletivos (homens separados das mulheres, é claro), além de alguns quartos individuais, mas que necessitam de reserva bem antecipada.
Uma vez por mês os médicos atendem a comunidade e o ashram distribui medicamentos e serve refeições para aqueles que esperam a consulta. Em torno de 1000 pessoas para 5 médicos. Neste dia nosso Karma Yoga foi ajudar nesse fantástico trabalho. Uma experiência muito rica.
Nos últimos dias, quando já estávamos bem enturmados, iámos para a Health Hut depois do jantar para jogar cartas com os amigos e era muito divertido. Tínhamos que ser expulsos de lá e encaminhados ao Satsang como crianças levadas.
Foi maravilhoso. Nunca pensei que teria a companhia do galego num ashram e nunca pensei que ficaria tantos dias. Também não sabia que seria possível fazer um curso tão completo de ioga lá. Um dos períodos mais felizes que já vivi.
Penso que um dos motivos foi passar tantos dias sem ter que escolher ou decidir nada. Não me sentia assim tão despreocupada desde que virei adulta. Uma delícia essa sensação de não ter que resolver absolutamente nada. Descobri que o excesso de opções na nossa vida moderna acaba nos estressando, porque temos que tomar pequenas decisões o tempo todo, mesmo que seja para decidir coisas boas: vou para a ginástica ou vou ficar lendo? Vou para um restaurante ou uma pizzaria? Passamos o dia decidindo, desde a hora que abrimos os olhos. Lá não tinha escolha, tampouco eu fazia questionamentos: existia a rotina a ser cumprida e pronto. Adorei essa sensação. Ao contrário do que se possa imaginar, nunca me senti tão livre.
Melhor que isso só ver o galego gostar também. E só o que nos incomodava era a não podermos manifestar nossos sentimentos de carinho um pelo outro, já que nem um beijo ou um abraço eram permitidos. Ao contrário do que pensávamos, a cada dia essa questão nos incomodava mais.
O duro foi sair de lá. Mas já estava na hora de voltar à vida real. Bem, outras experiências nos esperam. Mochilas nas costas e pé na estrada.